Por Karisa Ribeiro | Lorena Borges Dias | Giovanna Monique Alelvan
O transporte público é fundamental para garantir o acesso aos serviços de saúde e atividades essenciais durante a pandemia. Entre as ações governamentais de combate ao coronavírus, mais do que assegurar o deslocamento de profissionais de saúde e de populações vulneráveis, os setores de transporte e mobilidade urbana também podem exercer papel importante para a promoção da igualdade de gênero e aplicação de medidas de proteção às mulheres.
Estudos já mostraram que as mulheres estão na linha de frente do combate ao coronavírus e, por isso, são as mais expostas a ele. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em um levantamento feito em 104 países, 67% dos profissionais da área da saúde e de assistência social são mulheres, sendo elas: assistentes sociais; biólogas; biomédicas; dentistas; educadoras físicas; enfermeiras; farmacêuticas; fisioterapeutas; fonoaudiólogas; médicas; médicas veterinárias; nutricionistas; psicólogas; técnicas em radiologia e terapeutas ocupacionais.
As mulheres representam também parcela expressiva entre os trabalhadores dos setores de serviço e comércio. Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) revelam que quase metade da força laboral feminina está em condições de informalidade, sendo que cerca de 17 milhões de mulheres realizam trabalho doméstico – setor em que as taxas de informalidade são extremamente elevadas, cerca de 70%.
Além de desempenhar as atividades profissionais, observa-se que as mulheres ainda carregam grande parte da responsabilidade pelos cuidados de crianças e de parentes idosos. Isso faz com que elas sejam particularmente afetadas em situações de pandemia, devido ao fechamento de escolas, creches e asilos. Além disso, a OIT estima que as mulheres realizam 76,2% dos trabalhos de cuidado não remunerado, um número 3,2 vezes maior que o dos homens. Na América Latina, calcula-se que as mulheres destinam entre 22 a 42 horas semanais às atividades de trabalho doméstico e de cuidados.
Devido às condições de trabalho exaustivas e jornadas múltiplas que essas mulheres enfrentam diariamente, são gerados estados de estresse e esgotamento mental. Essas condições podem ser exacerbadas por dificuldades ligadas às dinâmicas de mobilidade diária: insegurança (devido à violência ou ao contágio), tempo de espera em pontos de parada, atrasos, lotação, entre outros. Por isso, é tão importante que medidas adotadas pelos sistemas de transporte público analisem a interseção entre a mobilidade urbana e a pandemia a partir de um enfoque de gênero.
O transporte público como agente de proteção
Na tentativa de diminuir pontos de conflito, a manutenção dos serviços públicos e atividades essenciais é imprescindível no enfrentamento e na superação da situação atual de emergência de saúde. Neste sentido, o transporte público deve manter suas atividades, mesmo que em regime de operação reduzida, visando garantir a mobilidade dessas profissionais e mantendo certa demanda, o que auxilia também as empresas concessionárias a superar esse período de crise.
O desafio é: garantir condições assépticas de mobilidade, com segurança e conforto nos trajetos de ida e volta do trabalho dessas guerreiras que colocam suas vidas em risco, dia após dia. Para tanto, algumas ações têm sido tomadas para garantir a melhoria do atendimento do transporte de mulheres, especialmente durante a atual crise de saúde pública, destacamos algumas delas:
Ações de segurança buscam garantir a proteção das usuárias em relação à violência no transporte público

● Veículos/vagões exclusivos para mulheres profissionais da saúde e auxiliares, com o objetivo de: (i) evitar o assédio; (ii) facilitar a locomoção de ida e volta dos locais de trabalho; (iii) resguardar de eventuais contágios entre os demais usuários.
● Publicar os horários das linhas e incluir sistema de rastreamento georreferenciado, para permitir um monitoramento em tempo real. Isso faz com que se mitigue o tempo de espera nas paradas e estações.
● Criar mecanismos de comunicação de emergência nas paradas de ônibus e estações de transporte ferroviário.
● Disponibilizar informações sobre canais de atendimento psicológico e denúncias de violência.
Ações de comodidade: objetivam o conforto das viagens diárias dessas profissionais que trabalham em condições, muitas vezes, estressantes

● Garantir uma quantidade máxima de passageiras, de forma que possam fazer o percurso sentadas (como em Tallahassee, Estados Unidos);
● Facilitar o acesso à internet nos meios de locomoção e nas estações, permitindo o recebimento de informações, mesmo em locais onde não há cobertura de internet móvel;
● Espaço adequado para colocar os equipamentos, utensílios e pertences pessoais para evitar a contaminação de outras áreas do veículo ou dos vagões.
Ações operacionais: visam reduzir o tempo de viagem e facilitar o acesso ao transporte público

● Disponibilizar vagões e ônibus exclusivos, especialmente nos horários de pico;
● Substituir os tickets de papel por cartão, para reduzir o contato nas estações (como em Auckland, Nova Zelândia);
● Utilizar sistema para recarga dos cartões online ou via aplicativos de celular (como em Auckland, Nova Zelândia);
● Estabelecer tarifa zero ou reduzida para as profissionais que estão atuando no Sistema Único de Saúde (SUS) e para a população vulnerável cadastrada em algum programa de assistência do governo;
● Diagnosticar rotas urbanas estratégicas para atender essa demanda de forma otimizada, com horários que considerem os regimes de plantões.
Ações de profilaxia: medidas para evitar o contágio da COVID-19 e outras doenças infecciosas que podem levar ao afastamento dessas profissionais

● Utilizar sistemas de triagem para medição de temperatura (como nas estações de metrô da China, em Recife-PE ou em supermercado de Guarulhos-SP);
● Limitar o número de passageiras por veículo/vagão (como em Tallahassee, Estados Unidos);
● Fornecer álcool em gel (como em São Paulo-SP), máscaras, luvas, sacolas plásticas descartáveis, lixeiras e outros itens de segurança pessoal;
● Apresentar material informativo sobre profilaxia, como: lavagem de mãos e alimentos; indicação de locais adequados para acomodação dos equipamentos, roupas e utensílios utilizados em ambiente hospitalar; distância mínima entre passageiras (como em São Paulo).
Ações governamentais: melhoria do transporte que atende especificamente o público feminino

● Oferecer transporte em casos de cursos práticos presenciais voltados ao combate da pandemia;
● Oferecer transporte para creches públicas, centros de convivência, “mães-crecheiras” (para filhos de mãe-solteira ou sem rede de suporte familiar);
● Oferecer transporte para locomoção de profissionais que são requisitadas entre estados e municípios;
● Promover acordos de cooperação com as empresas concessionárias do transporte público, para assegurar a sobrevivência financeira delas no período de crise e, ao mesmo tempo, garantir a oferta de transporte para os profissionais de saúde.
Vale salientar que as medidas citadas acima não possuem ordem a ser seguida, isto é, podem ser implementadas de forma paralela, de modo a potencializar seus efeitos positivos. É importante também que o setor de transportes tenha em mente que esse período de crise deve ser visto como uma oportunidade de reinvenção, para que a recuperação e o restabelecimento das atividades sejam pautados por melhorias e não retorno ao status quo anterior à pandemia.
Fica evidente que essas ações devem ser coordenadas de forma estratégica entre entes governamentais de diferentes esferas e em cooperação com as empresas concessionárias, visando a otimização do uso do transporte público, a sobrevivência das operadoras e o atendimento a essa demanda essencial para o enfrentamento da COVID-19. Esse tipo de coordenação aumenta as possibilidades de repensar os sistemas de mobilidade das cidades e também de avançar tanto em questões de operação quanto de segurança do usuário. Acima de tudo, esta é uma oportunidade para refletir sobre como os sistemas de transporte público podem evoluir para tornarem-se verdadeiros catalisadores da igualdade de gênero.

Karisa Ribeiro
É engenheira de transporte com especialização em planejamento e mobilidade urbana, gerenciamento de grandes projetos de infraestrutura, estudos de análise de viabilidade econômica, planejamento e modelagem de sistemas de transporte. Possui mestrado e doutorado em Engenharia Civil, Nagoya, Japão, e graduação em Engenharia Civil, Belo Horizonte, Brasil. Com 20 anos de experiência adquirida trabalhando no Brasil, Japão, Austrália e Nova Zelândia, Karisa atuou e coordenou equipes multidisciplinares, buscando desenvolver diversos negócios e oportunidades nos setores público e privado, com foco nas áreas de: gestão de projetos, estudos de análise de viabilidade econômica, mobilidade e acessibilidade urbana, otimização de recursos e capital em grandes projetos de infraestrutura. Como especialista sênior em transporte do BID, Karisa se dedica à concepção, gestão e monitoramento de grandes projetos de infraestrutura no Brasil e ao portfólio do Banco na região. Siga Karisa no twitter: @KarisaRibeiro

Lorena Borges Dias
Consultora externa na Divisão de Transporte do Banco Interamericano de Desenvolvimento.

Giovanna Monique Alelvan
Consultora externa na Divisão de Transporte do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Giovanna é Engenheira Civil e possui mestrado em Engenharia Geotécnica pela Universidade de Brasília (UnB). Atualmente é aluna de doutorado também pela UnB.
Publicado originalmente em BID Ideação em 16/04/2020